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segunda-feira, 18 de junho de 2018

REDE, 4



13/06/18 (mas poderiam ser várias outras datas em que ensaiei terminar esta carta e não terminei)

Querida Paula,

A quanto tempo não lhe escrevo...  Este hiato me fez recordar como as cartas demandam atenção, cuidado e dedicação. Curioso... um tempo dedicado a nós mesmos e ao outro, que fomos perdendo com a velocidade enlouquecedora das novas tecnologias. Temos perdido o tempo de degustar, de apreciar, de criarmos empatia e intimidade. Ou seja: temos perdido o tempo de amar. Já não sei se esta é uma fala de uma precoce avó, que nem filhos teve, com a única função de manchar com tinta nostálgica e cheiro de mofo este papel branco, para deixá-lo em tom sépia. Ou se, do contrário, ainda mantenho alguma jovialidade com pitadas de lucidez criativa e afetiva que me façam querer crer na possibilidade de atualizar este mundo datilográfico, sem perder a capacidade de olhar para os detalhes e aprofundar-me nas relações com alguma intensidade.

A vida e seus atravessamentos às vezes nos afogam em turbilhões... Daí as questões são tantas e tão urgentes que precisamos de silêncio para ver os fragmentos se reunirem novamente e pensarmos qual o fluxo seguir neste momento. É preciso meditar, deixar os pensamentos irem e voltarem. Sentei aproximadamente nove vezes para escrever esta carta e os parágrafos pareciam não se alinhar. Até que pensei no próprio desalinhamento da vida e das inexatidões que nos compõem, como você mesmo colocou na última carta sobre sua experiência acerca do Corpomancia. Também lembrei do que você havia dito sobre a confiança nas possibilidades que podemos construir e decidi confiar no  risco e embrenhar-me na escrita final desta carta sobre a qual não espere nenhuma lógica linear. Pois bem, estas linhas são bem mais um emaranhado de questões, conexões, redes. Como esta planta que encontrei na gravação do segundo videodança que estou produzindo para nosso projeto/encontro.





Esta planta me deu alguma esperança de que um emaranhado de ideias possa produzir alguma beleza e poesia, sem a mínima ingenuidade de pensar que meu cérebro seja capaz de produzir inteligência e exuberância similares a que a natureza nos apresenta.
Uma vez ouvi de uma amiga: “Precisei ficar num quarto de hotel com você para entender como você funciona. Teu pensamento é tão rápido que ninguém acompanha. Quando você fala alguma coisa e todo mundo acha que você está sendo impulsiva, seu cérebro já deu uma série de voltas, você já pensou por vários lados, foi e voltou, ponderou, e por isso falou. Mas esses movimentos são rápidos, muito rápidos.” Fiquei debruçada em suas palavras por um tempo. Já não tinha consciência disso, mas esse é um treinamento que fiz durante anos para a composição em tempo real em dança. Pensar enquanto ajo. Agilizar a capacidade de reflexão para tomar decisões em cena. Logo conectei essa fala com mais duas frases que ouvi de outros dois amigos. A primeira dizia: “Você é elemento fogo e chega sempre com muita intensidade.” A segunda dizia: “Você é água que flui no tempo de maneira doce.” Logo pensei que a intensidade fogo que me move constitui meu ânimo. Meu desejo de ser, de dançar, de produzir vida de maneira criativa, de criar laços conectivos. Mas se este fogo começa a se espalhar com muita intensidade pode causar queimadas e queimaduras. É preciso dosar para que ele seja chama acesa, ardendo desejos, mas que possa navegar como as águas para encontrar outros paradeiros e encontrar seus fluxos.

Sim. Sou curiosa. A curiosidade é o princípio da minha existência. A curiosidade é meu fogo. Ela me desloca, me leva ao outro, me faz ter interesse pelo outro, por algo. A curiosidade me faz criar. E logo me transformo em água para flutuar. A caminhar no mundo com os olhos curiosos, sou provocada e provoco. Outro dia, um feriado,  tive uma súbita curiosidade noturna e mandei uma mensagem para um amigo que eu pensava poder discutir determinada questão com mais propriedade que eu. Curiosidade não tem dia e nem horário. Ele me respondeu rindo e dizendo: “Você, sempre questionadora...”  Também refleti sobre isso. De uns anos para cá tenho percebido como sou provocadora nos ambientes por onde passo. Nunca tive esse ofício. Quer dizer, nunca acordei um dia e pensei: acho que serei uma provocadora. A vida não se constitui assim. Fiquei pensando nessa trajetória: a curiosidade vem acompanhada de questionamentos fundamentados (não gratuitos), os questionamentos vêm acompanhados de provocações, as provocações desestabilizam, as desestabilizações trazem novas curiosidades. Talvez aqui uma parte do círculo se abra para tornar-se espiral, para criar outros possíveis e não verdades absolutas. E isso é da ordem da composição em tempo real.

Compor em tempo real exige troca, diálogo. É como a docência. Troca e diálogo exigem ânimo de todos os envolvidos. Mas e quando não há ânimo de todos para que a troca ocorra? Parece que vivemos um tempo em que os ânimos andam desanimados. Conversava com Dudude Hermann outro dia sobre isto. Em nossas falas, e de tantxs outrxs profissionais que conhecemos, reconhecemos a dificuldade de lidar com a docência e as parcerias artísticas na atualidade. Parecemos viver um momento onde todos estão “desistidos” e quando o outro está desistido, não há espaço para ninguém entrar. O estado “desistido” normalmente se traveste de certa arrogância, de um saber tão enrijecido e seguro (ou, melhor dizendo, inseguro) de si, que não há espaço para o aprendizado, não há espaço para impulsionar novos ânimos. O estado “desistido” é tão seguro da desistência que não abre espaço para a construção conjunta. Construir dá trabalho. Construir junto, mais ainda! É mais fácil reclamar, falar mal, apontar o dedo para o outro, do que exercitar a alteridade, pensar com o outro, rever com o outro, trabalhar de forma ética e sincera. Em nossa conversa, percebemos que este estado “desistido” vampiriza aqueles que ainda têm ânimo e energia e os adoecem.

Neste sentido, comecei a pensar sobre o ceder. O contato improvisação é ótimo para nos ajudar a refletir sobre isso. Quanto ceder? Quanto não ceder? Quem cede o tempo todo? Quem não cede nunca? Como quem nunca cede aprende a ceder? Como quem cede o tempo todo aprende a não ceder? Como aprendemos a ceder e não ceder juntos? É possível? É possível reconstruirmos referências conjuntas, nas diferenças?

Estas têm sido questões que têm me permeado com alguma frequencia... em um período em que perdemos todas as referências éticas e que transgredimos todos os limites, esquecendo de que eles são necessários para a convivência social, o que nos sobra, além do caos, de crises existenciais e de um vazio humano aliviado com ansiolíticos, antidepressivos e entorpecentes?

Vejo nossa sociedade cada vez mais adoecida e me parece muito sintomático que os bailarinos também estejam adoecendo. Imagine! Se nós que supostamente lidamos com o corpo de modo sensível cotidianamente, pensamos nas práticas de consciência corporal e estudos somáticos, estamos nesse estado, imagine quem não construiu as mesmas possibilidades na vida... Longe de pensar que somos seres especiais ou melhores, mas em princípio, seria parte de nosso ofício cuidarmos do próprio corpo, ou não?

Confesso que a situação sócio-política em que nos encontramos, de total desorientação psíquica, me atravessa com alguma força, me desloca do eixo e me causa tontura. Buscar a verticalidade está cada vez mais pesado e difícil. Quero cada vez mais ficar deitada, embora não consiga dormir. Talvez porque colecione alguns motivos para não acreditar que tenhamos possibilidade de sair desse buraco negro. Não sei se chamo isso de pessimismo ou realismo. A cada manifestação popular a favor do fim da corrupção, entendendo que a solução para isso é uma nova ditadura; a cada vez que vejo um funcionário público receber um salário sem cumprir as funções que lhe são determinadas e ainda assediar moralmente as pessoas que exigem dele o cumprimento de seu contrato; toda vez que vejo um estudante de uma universidade pública não cumprir seus deveres mas exigirem uma série de direitos; cada vez que tenho que ligar em uma empresa de telefonia reclamando o valor da conta que veio errado e tardo muito em resolver; cada vez que não consigo facilmente encerrar um contrato de serviço; cada vez que vejo gente jogando lixo na rua e no mar; cada vez, cada vez... fico pensando se o governo é um problema isolado ou se estamos realmente vivendo um momento de desistência coletiva. O total abandono das possibilidades comunitárias. Talvez este governo falido e corrupto realmente represente a nossa sociedade. Frase polêmica. Sim, eu sei. Mas porque não temos o hábito de acompanharmos nossos governantes e suas ações de perto no dia a dia? Porque apenas quando a Rede Globo anuncia alguma tragédia fiscal começamos a acompanhar a política? Reproduzimos discursos dos quais, a maioria de nós, nem sabe como são construídos e por quem são construídos. Simplesmente tomamos um partido, como no futebol, e começamos a torcer por ele ou contra ele, com toda gritaria e alegoria que podemos. Vestimos até as blusas com as cores que os regem e criamos hinos, como nas torcidas organizadas! São coisas que nos constituem e nem sabemos exatamente os motivos. Ontem vi um bebê com a blusa de um time de futebol e pensei: meu padrinho me deu uma camisa do Flamengo assim que nasci, meu pai me deu um disco com o hino do time, quando eu era criança. Sou Flamengo roxo desde sempre e não sei nem o motivo. Só visto a camisa e torço. Se já é uma perversidade em fazer isso com um time de futebol, que não deixa de estar entranhado em situações de ordem política em nosso País, pense o que significa fazer isso com os partidos que nos representam! Nunca podemos generalizar, porque as exceções existem, mas olhar para um quadro que implica uma maioria neste sistema, é assustador.

Assisti ao filme O Processo e tive a confirmação do que já sentia. Estamos em um jogo, onde o que menos importa são as decisões coletivas e públicas. O que está em jogo são interesses privados de ordem financeira, intelectual e da ganância pelo poder. A população é apenas parte do jogo, uma espécie de backing vocal que dá suporte para o protagonista cantar: tem que se manter controlada para não tomar a frente da situação, mas tem sua importância na performance. O que importa é que a maior parte da população torça para o candidato A ou Z, para o partido C ou D de modo intenso, sem nem saber o motivo. Enquanto nos engalfinhamos entre nós, quem está no alto poder se organiza para atender seus próprios interesses. E, claro, como temos os micropoderes, que mantém esta mesma estruturação nas outras camadas, temos muito com o que nos ocupar aqui por baixo. Estava conversando com um amigo advogado e lhe disse: parece que a vida é só resolver problemas gerados por gente desonesta. E ele me respondeu: Mas realmente é. Em outras palavras, talvez este governo falido nos represente tanto que nos “absurdamos” ao ouvir nos noticiários o que ele é capaz de fazer conosco, porque, ao fim e ao cabo, nos projetamos ali, e vemos, com lentes de aumento, o que nós mesmos somos capazes de fazermos conosco no dia a dia. De repente parece tudo tão sem sentido. Mas sempre pensamos que a falta de sentido está apenas lá, né? Porque aqui continua tudo igual. Seguimos sendo uma população que mente, que quer tirar vantagens, que é desonesta, mas que se considera perfeita. Aí, nessa hora, vem alguém e fala: mas é diferente furar a fila do supermercado ou desviar bilhões. Sim, é diferente. Ninguém disse que é igual. Mas o princípio é o mesmo: tirar vantagem, entender que eu tenho mais direitos que o outro, pensar no mundo de modo individualista. Isso provavelmente significa que alguém está reclamando daquele que desvia bilhões, mas na primeira oportunidade que tivesse de estar no lugar dele, faria o mesmo. Porque nesse momento o que estaria na sua frente não seria uma fila de pessoas, mas uma fila de cédulas.

Dentro deste quadro, como pensar coletivamente? Como resistir a todo um contexto individualista, onde sempre o outro quer que se pense nele, mas ele nunca pensa no que está ao seu redor? Como encontrar pares que queiram também ouvir e não apenas falar? Como encontrar pares que queiram construir conjuntamente? Para reencontrar a vertical, tenho observado como posso tecer as redes que me embalem novamente para um novo movimento. Buscando não desistidos que ainda queiram construir ações coletivas, “apesar de”.

Tenho entendido que não é possível manter o ânimo /fogo aceso quando o outro não deseja essa troca. Desistidos precisam fazer o próprio movimento de reerguer-se, mas em sua própria estrutura. É preciso colocar o abdômem e os apoios ativados. Caso contrário, apenas soltarão seus pesos sobre outros corpos e os derrubarão. Parece-me que, de novo, o Contato Improvisação teria algo para nos dizer aqui. Para dançarmos juntos é preciso que os dois corpos estejam ativos para entendermos como eles se movem, produzindo energia mutuamente.

Nesse sentido, o evento que participei em Bacalar, México, Contact and Flow, me trouxe mais umas tantas questões... a experiência foi muito forte. Trabalhávamos Contato Improvisação boa parte do tempo na água e uma parte na terra. Lá eu não tinha desejo de falar ou escrever. O que eu vivia não se traduzia em palavras. Quando algo me atravessa, de fato, não desejo falar. Desejo vivenciar aquilo. As palavras parecem não caber.

Comecei a perceber como tenho falado ultimamente, embora tenha tido o desejo de me calar cada vez mais. Mas essa necessidade de falar vem vindo de uma ação didática na tentativa de comunicação com o outro, que está tão desgastada pelos processos de redes sociais. Cada vez as trocas de mensagens são mais curtas e as pessoas presumem mais o que as outras têm a dizer. Disso, se desenrolam diversos problemas de comunicação.

No encontro em Bacalar ouvi Andrea Scheel dizendo: “Não presuma. Esteja atento ao aqui e agora, ao que ocorre.” Parece-me que aí estava a chave. Como estávamos tão presentes no que fazíamos a comunicação se dava no lugar do sensível. As palavras não eram necessárias. Eu não presumia o que o outro queria/desejava/pensava. Eu vivia aquilo com o outro, escutando-o, percebendo-o. E, se ainda assim algo não ficava claro, do modo mais simples e direto, só perguntava ou respondia a questão que surgia verbalmente.

Talvez a gente ainda não tenha se dado conta socialmente de como olhar para o outro, escutar o outro, faz com que compreendamos muito sobre nós mesmos.

Joshua Wasem me ensinava a tocar hang drum, em alguns momentos livres. Eu, sempre muita enérgica, às vezes não conseguia medir a potência de meu movimento em relação ao instrumento. Ele me olhava, sorria e dizia: Be gentle! (Seja gentil!) A água e o hang drum foram me ensinando pouco a pouco a medir o fogo que havia em mim. Ser gentil é resistir. Ser gentil e resistir. Ser gentil para resistir. Pensava dia após dia, como ser gentil em contexto violento? Ali me parecia descomplicado. Estávamos todos envoltos por água, querendo ser água, em estado de água. Estávamos todos em um espaço natural que favorecia a troca, a convivência, o diálogo. Mas era um espaço/tempo suspenso, um período determinado, com as necessidades básicas previamente supridas.

Ainda assim, não estava tudo tão bem resolvido. Nas jams eu me questionava constantemente, por exemplo, sobre os encaminhamentos que o Contato Improvisação tomou. Nunca tive a oportunidade de estudar contato diretamente com Steve Paxton, mas trabalhei com alguns discípulos diretos dele. Quando comecei a me tornar curiosa sobre esta prática o que mais se seduzia era entender em seus princípios básicos a possibilidade de ampliação da capacidade de estar com o outro, de perceber o outro, de mover-se com o outro. A ideia de condução se borrava, na medida em que a percepção e a negociação dos pesos dos corpos ocorriam e os dois corpos em contato necessitavam identificar-se como elemento uno que se movia por algo que era criado pelo elo, pela conexão, e não pela imposição de um corpo sobre outro. Repentinamente, não apenas nas jams deste intensivo, mas em outras jams de Contato que já participei, comecei a identificar um protagonismo de processos de virtuose, nos quais as carregadas (liftings) se convertem no assunto principal, em tom acrobático, com pares que se fecham entre si num orgasmo dançante, sem abrir espaço para outros diálogos. Aqui se faz necessário pontuar que não tenho nada contra virtuosismo ou manifestações acrobáticas, mas entendo que já há outros espaços na dança que dão conta desses universos e não me parece que eles coadunem com as origens ideológicas do próprio Contato.

Em alguns momentos, assistir a jams de Contato me trazem uma sensação de que estes espaços se tornaram mais um espaço de experimentação, terapia ou produção de um prazer individual, do que uma possibilidade de treinamento criativo. Muitas vezes eu observo os participantes se fechando em si mesmos e reduzindo a sensibilidade para o outro, ao invés de expandir a percepção e o olhar para o outro. Em alguns momentos vejo se delinear quase uma espécie de seita, onde alguns se consideram avançados e, portanto, superiores aos outros e, de modo geral, só querem dançar entre si. Em vários momentos vejo pessoas que se tocam mas não estabelecem contato, o que me parece um contrassenso com a proposta inicial do Contato.

O que mais me interessava no Contato era identificar em sua filosofia a generosidade, a dissolução do poder de um corpo sobre outro, a produção de uma ação mútua e consentida pela relação, com a consciência do corpoespaço (seu e do outro). No Contact and Flow parecia que a água trazia estes princípios de volta. A água, de certa forma, nos faz diluir este estado hierárquico, de poder. Ela nos leva, nos conduz, nos coloca em outro estado, nos tira do controle. É fluxo.

Um dia dancei com Joshua na água. Era como entrar no vácuo. Sentir-me vácuo. Estar vácuo. Ser vácuo. Perdi qualquer referência, por estar vulnerável, mas os sonhos não me abandonaram. Eu e Joshua nos olhamos durante muito tempo após a saída da água. Quando saí minha sensação era de estar realmente só. Talvez porque hoje tenha percebido que passo muito tempo cuidando do outro, sustentando o outro. E ali, a água cuidava de mim, me sustentava. Meu corpo é água. Sou cuidada. Retomar essa sensação, que temos perdido enquanto sociedade, do cuidado com o outro, me parece essencial para reencontrarmos o ânimo. César Rendueles, no livro Sociofobia: mudança política na era da utopia digital, escreve, na pág. 194: “[...] a ética do cuidado é fecundamente política. Não porque a política se pareça com as relações familiares: em um sentido importante, é justo o oposto das relações familiares. Mas sim porque, no terreno dos cuidados, é evidente até que ponto as normas que assumimos nos transformam em pessoas que podem aspirar ser de outra maneira e por vezes só podem fazê-lo conjuntamente. A democracia não pode ser fragmentada em pacotes de decisões individuais porque está relacionada aos compromissos que nos constituem como indivíduos com algum tipo de coerência, um passado e alguma expectativa remota de futuro. E essa é uma realidade antropológica incompatível com o ciberfetichismo e a sociofobia.”

É realmente curioso perceber como novas relações presenciais atravessadas pelas virtuais vão nos fazendo perder o sentido do cuidado, de alguma maneira. A velocidade instantânea não gera conteúdos de aprofundamento, que exigem tempo e paciência para ler, para compreender, para analisar, para conhecer. Diferente daquele tempo de rápida resposta da composição em tempo real, em que treinamos para ter agilidade na leitura do contexto e na percepção das situações, esta velocidade outra da tecnologia incita uma manutenção da superficialidade e nos instiga a leituras descontextualizadas ou sitiadas em contextos semi-controlados (nossos contatos de redes sociais que são estabelecidos apenas por zonas de interesses afins). Nas redes sociais aprendemos a buscar os iguais e banimos os diferentes, cada vez mais fortemente. Estamos perdendo a capacidade de conviver com o diferente.

Nestes dias que voltei minha atenção para a natureza e que pude dançar durante dez dias em uma lagoa de preservação ambiental, fiquei pensando em como necessitamos voltar às nossas origens naturais, porque elas nos ensinam a viver. Não há melhor espaço educacional e artístico do que a própria natureza. Pensei em quantas e quantas vezes avançamos na natureza sem percebê-la, de fato. Nestes dez dias, era preciso termos o cuidado de como ser este espaço. O que já estava ali antes de nossa chegada? Como pedir permissão para entrar? Cuidar. Ouvir. Ver. Contemplar. Estar com. Como perceber os diferentes e os semelhantes e como estabelecer esta convivência? Estas nuances foram se expandindo para as relações entre os bailarinos que ali estavam. Gradualmente fomos estabelecendo este espaço de cuidarmos uns dos outros. Fui percebendo como a vida fica mais leve quando cada um pára de pensar em si e começa a pensar em si na relação com o todo, quando há respeito mútuo, quando se entende que para ser respeitado é preciso, antes, respeitar a si mesmo, ao espaço e ao outro.
Da mesma forma em que encontramos parceiros para dançar, para conversar, para sonhar, encontramos espaço para trocarmos arte. Nos únicos dois turnos de folga durante dez dias, encontrávamos o mesmo tesão em passearmos juntos e tomarmos uma cervejinha no gramado do “pueblo” que estava perto, como em trocarmos sessões de janzu, massagem, aprendizado de instrumentos e cantos, fotografias, vídeos.  

No último dia de viagem recebi um presente de Diego Muñoz, bailarino e videomaker, que fez algumas imagens do videodança  Sob o Céu do Silêncio, primeiro videodança que trocamos aqui. Ele me deu uma pulseira branca com os dizeres: “Elejo levá-la como símbolo de amor, paz e respeito a mim e ao meu entorno.” E vinham escritas as palavras: amor+alegria+gratidão+paz+amor+perdão+respeito+vida. É de uma ong que se chama: demidepiende.org. Diego me disse que estava dando esta pulseira para as pessoas que ele conhecia que se identificavam pelo desejo de colocar esses princípios no mundo, para que a gente se reconheça. Voltaram as minhas questões sobre as comunidades que vão se formando... mas ao mesmo tempo, pensei: “Que lindo! Se é pra me territorializar ou para ser identificada com alguma comunidade, que seja com esta!” Fato é: me senti feliz e sigo com minha pulseira pulsando.

Após esse tempo de suspensão, beleza e leveza, como voltar para um grande centro urbano, como é Fortaleza, e manter a calma, a gentileza, a delicadeza? Dois dias depois que voltei de viagem, por exemplo, fui a uma festa na Praia do Futuro, e ao sair de lá, tive que sobreviver a um tiroteio provocado por dois policiais que saíram brigando da festa. Um faleceu na nossa frente. Aproximadamente dez disparos foram dados. Alguns segundos que pareceram horas... Minha vida estava dependendo de uma bala se encontrar ou não com o meu corpo. Tenho amigos em Fortaleza que moram na periferia e vivem isso mais de uma vez por semana. Todos os dias penso que Nostradamus talvez tivesse razão e esse seja realmente o fim do mundo. Estamos nos exterminando. Reafirmamos sistemas que pensávamos terem caído por terra, como o darwinismo e nos atiramos a reforçar nossas diferenças e mostrarmos nossa força. Queremos todos nos empoderarmos. Para que alguém se empodera? Para demonstrar poder sobre o outro. Toma para si a lógica e o sistema do qual discordava, reclamava, criticava, abominava e o reproduz apenas invertendo seu lugar nessa cadeia. Passa de agredido a agressor. Mas o outro também se empodera. E então é agressor contra agressor. Força com força. Murro com murro. Grito com grito. Grito é ar das entranhas exposto em som. Mas excesso de vento mata cacto, lembra? Matamos nossa própria capacidade de resistir.

Porque ninguém discute a capacidade global de se desempoderar? Porque não nos desempoderamos todos para começarmos de novo a nos olharmos como seres humanos, e só? Utopia. Sim... a utopia às vezes me dá alguma força para viver. Porque está no plano dos sonhos. E ainda não perdi a capacidade de sonhar. Meus sonhos não serão roubados.

Ainda prefiro olhar para os sorrisos que recebo em Fortaleza. Isso não é negar a violência que nos assola. Ainda prefiro buscar a força no mar, sem invisibilizar a periferia. Ainda prefiro acreditar em outros possíveis, sem ignorar a dureza do contexto. Mas penso, com o fundo de meu coração, que só sairemos desse buraco se construirmos outros possíveis. E agora, agorinha mesmo, só tenho encontrado estes possíveis mantendo os sonhos em movimento.

Enfim, minha querida, acho que finalmente terminei esta carta sem ponto final. Seguimos nos emaranhando na tentativa de produzirmos flor.

Com afeto, Aninha Mundim.

P.S.1. Para quem quiser ver o videondaça Sob o Céu do Silêncio: https://www.facebook.com/ana.mundim.7/videos/10214272510139847/UzpfSTEwMjg2MjMzNTE6MzA2MDYxMTI5NDk5NDE0OjEwOjA6MTUzMDQyODM5OTotMjAyODExMDY3NDczOTg0NjY3MQ/

P.S.2.  Quantos “eus” “eu” disse nessa carta. Fiquei a me perguntar qual o nível de egocentrismo há nisso. Estaria traindo minha própria busca pela coletividade? Mas se “eu” traio a mim mesma, “eu” ainda seria “eu”? E se eu falo de mim a partir do olhar do outro, já não há o outro em mim? Mas como falar do mundo de uma perspectiva outra que não seja a minha? Enfim, talvez compartilhar uma experiência que é minha, também torne esta experiência do outro, do mundo. Como canção a ser composta. Não sei... tenho minhas dúvidas, até sobre mim mesma.


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